quarta-feira, 22 de julho de 2015

Luanda fica longe

                              LUANDA FICA LONGE

          Quando chegamos à Luanda de automóvel, sentimos despertar, por dentro, um rosario de emoções intensas e contraditórias. Tomamos a estrada do Benfica, após subir o morro do museu da escravatura. Um pequeno tremelique nos faz abanar da cabeça aos pes. Ei-la. Está ali: Luanda, a terrível. Chamo-a assim por deferencia estritamente pessoal. No fundo, ela tambem ë parte de mim.      
               Miro-a atraves da janela do carro. O Mussulo a flutuar, aparentemente impassivel, como um dongo esculpido na mafumeira do mar. Os prédios avistam-se ao longe, coados pela distância, erguem-se para o céu como lancas anunciadoras da nova era. Muitas obras em curso, novas urbanizações, chineses por todo lado. Lindas e modernas edificacoes, sim senhor. contudo, o areal vermelho de antanho não engana, nem deixa enganar. Tem musseque ainda, coberto pelo manto da miséria que o colono deixou e nos, que nao nos deixamos, reciclamos cientificamente. Os manuais ensinam porque razão se emigra para a capital: em África quem vive longe da decisão lhe esquecem m'bora com ele. Nós, o povo especial, ingerimos com sofreguidão o manual completo, para não variar. 
             Para se viver aqui na Nguimbi tem de se saber dar palpite sobre todos os mambos, mesmo que o assunto seja o programa espacial da NASA, ou uma migracao de passarinhos na Gronelandia.

             Mesmo assim chegamos! Luanda, a nossa metrópole! Terra dos vivos e dos vivaços. Aqui o cabrito come onde está amarrado. Mesmo o velho cágado sabichão não sobe à árvore sòzinho, lhe empurram com ele. Cidade grande! Tem gente versada nos esquemas da ginga, para o fogo não apagar nos fogareiros nem o pão cair no gasoleo. E também para as as crianças não quebrarem o lápis cedo. E depois, quem nos vai acudir, quando a velhice chegar?
            Luanda, a arena de exímios gladiadores no corpo-a-corpo, das cabalas palacianas que dão caminho aos faustosos banquetes familiares e clânicos, que os há. Coitados dos buamados, para eles o sol jamais brilhará e as nuvens ameaçarão temporais de proporções bíblicas. As cisternas de São Pedro jorrarao sem clemencia as torneiras sobre a cabeça dos musseques e os entulhos de lixo nas ruelas serão a abundancia dos deserdados.
Na nguimbi o jogo é rapido, baliza-a-baliza. O buamado não apanha nada. São os "Mukuakuisa", os que vieram sem nome de família e já nozencontraram connosco mesmos. Como vamos aceitar nos tirarem agora? Vejam lá se isso tem lógica! No olho!
            Diz-se que mais de um terço da população de Angola vive por aqui. Avançamos em direcção ao Rocha Pinto. No ar continua a pairar o encanto do característico cheiro das coxas de frango. Inumeros grelhadores caseiros expõem ao ar livre o apetecido petisco luandense, importado de qualquer estranja. Na luta pela vida, não resta tempo para ir à casa pitar. Os passantes são buereré. Após o petisco, uma mana de calções elásticos colados ao corpo e uma buluza (é mesmo buluza, como cantou o Paulo) decotada, convida a malta para as competentes birras, tiradas do gelo, a estalar. Ela tem os lábios reluzentes, betumados com um escandaloso baton roxo. Na certa esqueceu os carrapitos que vavó fazia. Agora usa cabuleira pustícia, que lhe cai feiamente para as costas nuas:- "Mano si vuce que um bardi de birra pede só, paga no fim". Ela sorri um sorriso de coxa grelhada, convidativa, maliciosa. Parece a mana se vende com cerveja à balde, ou melhor, à balde com cerveja, que é o mesmo mas não é igual. São muitos candidatos a morder a coxa e a engolir o bardi.
                - Adeus mana das birras bardadas, a capital nos espera, para moer-nos as ossadas da paciência.O saco das gasosas já está preparado. Nunca falha. A fila de carros começa a ser longa, exasperamos. Avança-se aos soluços. Vai embrulhada uma espetada de moelas e uma fresquinha, medicamento milagroso para não perder o ânimo. Os "hiaces", autênticos predadores do tráfego surgem de todos os lados. Pela esquerda, pela direita, de frente, de tràs, autêntico bacanal rodoviário. Chamam "mbaias" às manobras para fugirem ao trânsito ordenado. Entram por onde querem, como querem e quando querem. Entram-nos aqui e depois vão entrar-nos mais à frente. Quem dá as ordens é o cobrador-gritador, geralmente um garotelho com cara suja e um maço de notas nas mãos sebosas, eh para facilitar os trocos. Esses garotos nunca guiaram uma bicicleta na vida. São eles que chamam a clientela. Têm voto na matéria. Quando gritam "mbaiaaaa !!!", o motorista não vacila, entra com o "hiace" em qualquer buraco.
              Chegamos em Luanda, como agora se diz; assim mesmo as pessoas falam, mesmo pessoa que reinvindica na televisao ser doutor. Queria vê-los a responderem a umas perguntinhas da minha professora Gracinda, que me transportou com a maralha do Inconcon e da Assaca desde a cabunga ate a 4ª classe no tempo do caputu, debaixo do olhar severo da gramática do Relvas. Haveria reguadas na certa, nem com caca de galinha nas mãos se safavam. Mas agora fica tudo na boa. Afinal sempre se completa o ciclo da comunicação, o importante é a gente se entendé, né mêmo? Depois tem bom fato italiano fabricado no Brasil, com gravata da "Gucci" trazida na muamba da China e ainda os sapatos de pele de lossengue indonesio, mais o exuberante Land-Cruiser metalizado.

           Ainda por cima no jogo jogado, vale tudo e tudo vale, mesmo picar no olho do outro muadié pra não fazer barreira. Tem até árbitro que apita parece ë brincadeira no areal ao meio dia: assinala o penâlti, depois o próprio marca o golo e nas calmas vai simbora com a bola, tipo nada. A bola é dele, lhe deram na família e agora ninguém pode lhe cassumbular. Ele é vijú, Uauééé!
Luanda fica longe!

0 comentários: